Um ano e sete meses após a maior tragédia rodoviária ocorrida no Espírito Santo, o ultramaratonista João Tarcísio de Castro ainda não conseguiu retornar a sua rotina de treinamento. O corredor estava entre os passageiros do ônibus da Viação Águia Branca, que pegou fogo após colidir com um caminhão e duas ambulâncias, na BR 101, em Guarapari, no dia 22 de junho de 2017.
23 pessoas que viajavam no mesmo veículo que João morreram após o grave acidente e 18 ficaram feridas. Na tragédia, o corredor teve ferimentos e queimaduras nas costas, no braço e no quadril.
O primeiro treino após a tragédia
Voltar a correr após a tragédia despertou em João um sentimento de gratidão. “Dei graças por estar vivo e poder refazer as coisas. Tanta gente perdeu a vida naquele acidente. Poder voltar a correr e curtir o dia a dia da vida e da corrida foi gratificante. Fui tomado pelo sentimento de gratidão e pela oportunidade do recomeço. A vida me deu uma chance para continuar e passei a vê-la de um ângulo diferente”.
Apesar de recuperado fisicamente, João Tarcísio não conseguiu manter seu volume de treino. “Voltei a correr, mas não consegui voltar ao meu ritmo normal, por conta de uma série de consequências financeiras, psicológicas e pessoais. O acidente deu uma quebrada nos meus treinos e surgiu uma hérnia na minha virilha, que tem provocado dores quando estou correndo”, explica.
Ultramaratonista, João girava cerca de 120 quilômetros por semana, fazia duas horas de musculação de segunda à sexta-feira e, aos domingos, priorizava os longões. “Meu foco era ultra. Eu tinha um ritmo mais pesado de treinamento e, se formos comparar hoje, eu praticamente parei de treinar. Às vezes eu treino somente 30km por semana. Veja bem, eu corria isso em um dia e hoje é por semana. Agora me apareceu uma hérnia na virilha, então quando sinto a dor eu paro”, lamenta.
Marcas da tragédia
Das marcas do acidente, ficaram as cicatrizes das queimaduras nas costas. “No aspecto emocional, já fiz várias viagens de carro, ônibus e carreta. Já tinha sofrido outros acidentes. Então, não tive nenhum trauma do acidente em si. Só a primeira viagem que fiz, fiquei um pouco assustado e qualquer balanço do ônibus eu acordava”, conta João.
Eu já tinha foco de não ficar correndo atrás do dinheiro. Depois do acidente, isso ficou ainda mais forte. Você chega à conclusão de que a vida é muito rápida e ela acaba sem avisar. Tenho muitos momentos de questionamentos: “Será que estou vivendo a vida ou estou apenas passando por ela?
Como a corrida o ajudou
João avalia que o condicionamento adquirido com a atividade física foi essencial para que ele tivesse uma rápida recuperação.
“A ultramaratona me capacitou para a resistência. Ou seja, estar bem preparado me ajudou a lidar com a recuperação. Ser ultramaratonista melhora muito a nossa maneira de ver as coisas. O esporte traz um benefício muito grande para a vida das pessoas. A corrida, não sei por que, mas dá uma leveza e uma paz de espírito muito grande”.
Pensou em parar de correr?
O ultramaratonista em momento algum pensou em parar de correr. “Não, não passou pela minha cabeça”. Eu poderia ter tido uma lesão e encerrado a minha história com a corrida. A sequela de outras pessoas foram suficientes para isso, mas em mim não”.
Sonho de corrida
Enquanto luta para conseguir retomar o mesmo volume de treinos, João Tarcísio sonha em realizar um desafio pessoal.
“Anos atrás, bem antes do acidente, participei da Cassino Ultra Race, no Rio Grande do Sul. Um ciclone interrompeu a prova e a organização retirou as pessoas do percurso. Fomos impedidos de continuar. Ou seja, eu não consegui concluir a Cassino. Prometi que ia não só voltar, mas dobrar a prova. Ou seja, fazer o percurso de ida e volta. São 230km e terei que fazer 460km. Até hoje não consegui voltar lá. E não sei se vou conseguir treinar o suficiente para conseguir fazer. É uma prova desgastante e a praia totalmente deserta. Só tem areia. Na ocasião do ciclone, eu achava que tinha condições de terminar. Ao meu ver, não era necessário retirar as pessoas, mas a organização ficou receosa com as condições: chuva, raio, trovões e ventos de 100km por hora”.
A primeira prova após o acidente
A primeira prova após o acidente foi ao lado de quem o inspirou a correr. “Foi na Dez Milhas Garoto 2018 ao lado do meu pai, que tem 80 anos. Ele ficou em primeiro lugar na categoria dele e eu tive a oportunidade de participar dessa vitória”, diz emocionado.
“Passei por cima de pessoas e não pude socorrer”
João é microempresário e voltava para Vitória depois de uma viagem de compras em São Paulo. Com a tragédia, teve um prejuízo de aproximadamente R$ 15 mil com a perda das mercadorias. Na ocasião, o ultramaratonista me contou os momentos de pânico e desespero que aconteceram logo após a batida do ônibus. De acordo com o sobrevivente, que dormia no momento do acidente, tudo aconteceu muito rápido e ele não teve como ajudar mais pessoas.
“Só me lembro do estrondo forte e quando olhei para frente, já estava tudo quebrado, com pessoas caídas no corredor do ônibus, muitos deitados em cima dos outros, mas não tinha como socorrer ninguém, pois o fogo estava vindo logo atrás”, conta.
Segundo João, se ele não tivesse preparo físico, não teria conseguido se soltar do cinto de segurança e sair do veículo antes de ser atingido pelas chamas. “Eu fiquei pendurado. A parte em que eu estava no ônibus ficou pra cima e se eu não tivesse força nos braços para me levantar e puxar meu corpo para cima, eu ia morrer carbonizado. Foi coisa de Deus. Eu estava preso no cinto e se eu não tivesse força para me soltar, não teria me salvado. Passei por cima de pessoas no corredor e não pude socorrer. O que deu para fazer, eu fiz”, relatou.
Quando já estava fora do ônibus, João Tarcísio ainda ajudou outras pessoas que também conseguiram sair do veículo. “Eu vi uma senhora saindo em chamas do ônibus, mas ela rolou no chão e apagou o fogo. O filho dela também saiu e eu ajudei a apagar as chamas que estavam nele. Estes dois eu tenho certeza que se salvaram. Eu também ajudei outro rapaz e arrastei ele para o meio do mato, mas não sei o que houve com ele”, relata.
A tragédia
O acidente aconteceu por volta das 6 horas do dia 22 de junho de 2017 na altura do Km 343 da BR-101, em Guarapari. A batida envolveu o ônibus, duas ambulâncias e uma carreta. De acordo com informações da equipe da Polícia Rodoviária Federal (PRF), que estava no local, o motorista do caminhão, que estava carregado com uma pedra de granito, teria perdido o controle e invadido a pista contrária. Segundo a viação Águia Branca, o ônibus havia saído de São Paulo às 16 horas do dia 21 de junho com chegada prevista na rodoviária de Vitória às 7 horas do dia seguinte. Havia 31 passageiros no veículo.
O então secretário estadual de Segurança Pública, André Garcia, classificou o acidente como “a maior tragédia rodoviária do Espírito Santo”.
Repercussão internacional
O grave acidente, considerado o maior do Estado, ganhou repercussão internacional. Jornais de todo o mundo destacaram a tragédia. O britânico Daily Mail lembrou que as causas do acidente ainda não estão esclarecidas. Já a agência de notícias francesa EFE contou que o ônibus estava próximo ao destino final. Na China, a agência CGTN mostrou diversas imagens da colisão, e o jornal indiano, The New Indian Express, lembrou que todos os anos 47 mil brasileiros morrem em acidente de trânsito.
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